O género, a mobilidade e o futuro da investigação científica
Abstract
O artigo aborda a relação entre a mobilidade científica e o género. Problematiza-se a forma como os investigadores experienciam a mobilidade internacional, em particular a mobilidade de longa duração, atendendo em especial, à influência do género como variável definidora de práticas e de expectativas diferenciadas em relação à mobilidade e ao lugar desta na prossecução das carreiras científicas de homens e mulheres. A mobilidade de cientistas tem sido alvo de uma variedade de estudos nos últimos anos, os quais tendem a enfatizar a ideia de que a mobilidade influencia positivamente o desenvolvimento das carreiras individuais, assim como as dinâmicas de investigação das organizações. Todavia, a variável sexo tende a ser relativamente marginal nestes estudos. Por sua vez, a literatura que incide sobre as relações sociais de género ao nível da academia e da ciência, embora abordando os mecanismos estruturais que tornam as mulheres, em comparação com os seus parceiros homens, mais vulneráveis a processos de segregação e de discriminação, não tem abordado diretamente a mobilidade internacional, suas implicações e efeitos. No entanto, com base em contribuições provindas destas duas abordagens, é possível identificar algumas teses sobre as formas como as mulheres experienciam a mobilidade. Por um lado, existe a ideia de que a mobilidade internacional facilita a construção de contextos de ação mais favoráveis à projeção das mulheres em carreiras científicas, uma vez que em espaços estranhos, as mulheres poderão escapar ao controlo social imposto pelos processos de socialização e, de certa forma, ver mais facilmente reconhecidos os seus esforços individuais. Por outro lado, existe a ideia de que o reconhecimento da necessidade de ser móvel internacionalmente conduz as mulheres em carreiras científicas a adiar projetos pessoais e familiares, quer adotando modelos de carreira masculinos, quer adotando variadas formas de convivência com as exigências familiares que podem, no limite, implicar a decisão de não efetuar mobilidade. A partir destas noções, e tendo ainda em consideração as alterações no modo organização da produção de conhecimento científico ao nível global, bem como as transformações e as dinâmicas que atravessam as relações sociais de género (nomeadamente as alterações nos modelos e nos padrões comportamentais dos homens) é possível levantar algumas questões sobre a mobilidade e a sua relação com o género. É necessário compreender quais são efetivamente as diferenças entre homens e mulheres na forma como experimentam a mobilidade internacional de longa duração, incluindo as motivações subjacentes às decisões sobre mobilidade e o impacto desta no desenvolvimento da carreira científica. É também pertinente entender de que modo e até que ponto estas diferenças podem significar desigualdades de género, no contexto das carreiras académicas e como se podem entender estas discrepâncias, em termos de política científica, que tem sido associada à reprodução de mecanismos de dominação de género e de classe. Tendo em vista responder a estas questões, foi conduzida investigação empírica sobre as trajetórias da mobilidade dos cientistas portugueses e o seu impacto no desenvolvimento da carreira científica. A investigação incidiu sobre os investigadores doutorados membros de centros de investigação portugueses – Unidades de I&D e Laboratórios Associados - em três áreas científicas com características diferenciadas: tecnologias de informação, ciências da saúde e sociologia. A informação foi recolhida através de um questionário, que originou 400 respostas válidas, e através de entrevistas a um grupo selecionado de 19 investigadores. A análise incidiu sobre: a trajetória de educação e a trajetória profissional após o doutoramento; a situação pessoal atual; as motivações para mobilidade/não mobilidade ao longo da trajetória e intenções de mobilidade futura; a composição da rede de conhecimento principal (as cinco mais importantes colaborações); a natureza das atividades de colaboração científica internacional. Com base nos dados obtidos procurou-se compreender como vivem os investigadores a mobilidade, as fases em que esta tem maior probabilidade de ocorrer, os motivos que enunciam para terem realizado, ou não, mobilidade de longa duração, assim como os impactos que essa mobilidade teve ao nível da construção e tipo de utilização de redes de conhecimento. As entrevistas permitiram ainda entender, de forma mais aprofundada, como os próprios investigadores explicitam as suas opções, admitindo a interferência de outras variáveis na construção das suas carreiras, entre as quais está o fato de serem homens ou mulheres (como é claramente visível nos excertos apresentados). Os resultados confirmam parcialmente algumas ideias veiculadas pela literatura sobre o género, mas questionam outras. Com efeito revelam, por um lado, a permanência de entraves no caso das mulheres, que evidenciam mais dificuldades do que os homens em efetuar mobilidade e em obter todas as vantagens que esta teoricamente propicia, e cujos perfis de mobilidade envolvem um grau de antecipação e de previsão maior do que o dos homens, independentemente da idade. Mas, por outro lado, revelam um crescendo de convergência entre homens e mulheres, tanto no que concerne tanto à perceção da mobilidade como um indicador necessário à avaliação de desempenho e promoção na carreira, como na importância atribuída aos projetos familiares na definição dos percursos e escolhas profissionais. O estudo permite ainda consolidar a hipótese de que as variações no entendimento e no uso da mobilidade por homens e por mulheres estão bastante dependentes das transformações que hoje atravessam as carreiras académicas, nomeadamente a sua crescente precarização acompanhada da necessidade de mobilidade para vários destinos do mundo. Afinal escolhas que exigem, desde logo, respostas que vão ser consideradas à luz das socializações e das expetativas de género. Além disso, permite consolidar a ideia de que os investigadores (homens e mulheres) tendem a mitigar os efeitos das variações de género na explicação das suas opções e escolhas de carreira, preferindo atribuí-los a características de personalidade, grau de esforço e de investimento individual ou mérito. No entanto, como se evidencia através desta pesquisa, os mecanismos de avaliação de desempenho que incluem a mobilidade como indicador de qualidade científica, encobrem, sob um discurso fortemente valorizador do mérito e da iniciativa individuais, desigualdades de género que são de extrema relevância para pensar o futuro da investigação científica.